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     A meio da viagem, Ryan Phillipe reage mal ao facto do indivíduo no lugar do morto pôr a mão no bolso para tirar qualquer coisa. Reagir mal, neste caso, é o equivalente a dizer usar a sua arma de serviço numa espécie de “legítima defesa”. Em poucas palavras, o negro com a arma algures escondida era, afinal, o negro com uma estatueta da virgem Maria algures escondida. E assim morre um inocente.

 

 

     Agora desçamos à terra por uns instantes. Neste universo não hollywoodesco, a realidade diz que existem pessoas sem dinheiro para comprar e manter um carro ou até mesmo tirar a carta; existem pessoas que não gostam de andar de transportes públicos; existem pessoas que adormecem ao volante por não terem alguém com quem falar numa viagem de quatro horas; existem pessoas sobredotadas que percebem que um carro polui menos do que cinco; e até existem pessoas que oferecem boleias em troca de latas de comida para cão. Podíamos alongar-nos ainda mais nesta lista, mas já se tornou perceptível que nem todas as pessoas que pedem ou oferecem boleia têm intenções maquiavélicas ou sofrem de algum tipo de sociopatia. E sim, a loira voluptuosa com os resquícios de óleo pode, eventualmente, ficar enamorada com o nosso altruísmo e a noite até vir a acabar num quarto de hotel.

 

 

     No entanto, não estamos com isto a dizer que seja fácil depositar a nossa confiança num forasteiro que está especado à beira da estrada. São compreensíveis os sentimentos de introversão e insegurança. Talvez por isso tenha surgido a necessidade de sistematizar este processo, tornando-o mais complexo, por um lado, mas mais eficaz, pelo outro. Mais do que sistematização, talvez possamos mesmo falar de uma institucionalização da boleia.

 

 

 

 

     De uma prática ineficiente e rudimentar nasce m método fiscalizado e moderno. Graças aos grupos de Facebook e aos sites direccionados para a partilha de carro, aquela pessoa sobre a qual nada se sabia, torna-se numa entidade mais tangível, na qual se torna mais fácil confiar. No fundo, vamos dar boleia a alguém com quem possivelmente nunca estivemos, mas sobre a qual já conhecemos algumas coisas, nomeadamente o próprio rosto. 

 

     Quem de nós negaria boleia a um conhecido se passasse por ele na rua? Neste caso, as desconfianças e receios perdem todo o sentido e, a não ser que a pessoa em causa não seja do nosso agrado ou nós do seu, até vamos ter gosto em pôr a conversa em dia.

 

     Junta-se o útil, que é a necessidade de chegar a um destino, ao agradável, que é a confraternização. Partindo deste pressuposto, deixam também de existir quaisquer motivos para se desconfiar do utilizador de um site de boleias. O facto de a plataforma impor restrições ao registo no site, permite-nos saber tudo o que precisamos para uma primeira abordagem: naturalidade, profissão, idade e até mesmo a marca do carro onde, eventualmente, iremos ser transportados.

 

     Ao fim e ao cabo, já não podemos falar de “dar boleia a desconhecidos”, porque, quer queiramos ou não, há impressões que se trocam, há um vínculo pré-boleia que gera algum conforto ao utilizador, seja ele condutor ou passageiro. Feita a primeira experiência, até se pode dar o caso de não termos simpatizado com as pessoas com quem partilhámos carro. É tudo uma questão de procurar melhor e encontrar um match perfeitoA revolução dos transportes iniciou-se, de facto, no século XIX, especialmente com o aparecimento da energia a vapor. Contudo, dois séculos mais tarde, eis que surge um novo meio de transporte.

 

       

     Não é assim tão fácil contabilizar os filmes que contêm, pelo menos, uma cena em que o actor X oferece gentilmente boleia ao transeunte que esticou o polegar à beira da estrada. Este transeunte aparece-nos geralmente de três formas distintas: ou é um negro que só por ser negro se “deve” presumir que tenha uma arma algures escondida – e, neste caso, é melhor oferecer-se-lhe a boleia porque ele pode não apreciar o gesto da rejeição e rebentar com os miolos do pobre actor -, ou é um velho que vai carregado com os sacos das compras e com uma etiqueta virtual estampada nas costas, onde se pode ler a negrito “faça a boa acção do dia”, ou, na esmagadora maioria das situações, é uma loira voluptuosa com resquícios de óleo espalhados pelo corpo por ter um pneu furado e não saber o que fazer para o trocar.

 

 

      De facto, a natureza do transeunte é incerta, ainda que não fuja muito a esta categorização. O certo é que quem vê o filme nunca tem esperança que aquelas duas personagens se venham a tornar amigos para a vida ou caras metade uma da outra. Tudo o que se sabe à priori é que alguma coisa vai dar para o torto. E construir um estereótipo é tão fácil quanto isto. 

 

  Numa cena do filme Colisão, realizado por Paul Haggis, o actor Ryan Phillippe, que encarna um jovem polícia amedrontado e inexperiente, responde positivamente à sinalética do primeiro protótipo de transeunte que falámos: o negro com a arma algures escondida. 

 

 

           CRÓNICA 

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